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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

A SANTA E A POMBA GIRA

Dizem que o sertão nos ensina a pensar. Seu Godofredo Cruz, um dia, disse para mim: “Meu filho, o sertão é uma escola cujo currículo é a vida”. Lembro-me muito bem desse dia, pois ao ouvir as palavras do homem fiquei um tempão pensando nelas. Devo confessar que não entendi bem as palavras de Godofredo, mas, as guardo até os dias atuais porque eu pude ver com os meus olhos que elas eram verdadeiras.

Godofredo depois do acidente de Chiquinho caiu em depressão. A figura robusta de um homem rosado e forte se transformara num esqueleto vivo que andava com muita dificuldade. Quando o via, mesmo sendo ainda um jovem púbere, minha alma chorava, pois, o velho Godofredo, embora severo em seus julgamentos, era um homem bom, não merecia aquilo.

O Riacho do Junco havia enchido muito por causa das trovoadas de Santana. Era costume do velho Godofredo pescar nessa época do ano. “A pescaria alegra meu homem” dizia dona Maria das Dores sua amada esposa.

Lembro-me de tê-lo visto descer para as bandas do Riacho do Junco. O velho levava sua tristeza e sua vara de pescar, e as iscas em um saco plástico. Ele passou defronte a janela de meu quarto, por isso pude vê-lo com muita nitidez. Seu rosto dizia para mim que Godofredo precisava de um milagre. Ora, minha jovem pessoa num entendia muito de religião. O padre Oliveira nos dera a catequese e a eucaristia, o resto, eu nada entendia, na verdade, eu não sabia nada de religião mesmo, no entanto, Godofredo fora coroinha quando menino, e quando homem feito, foi diácono da igreja. Talvez tenha sido essa a causa de sua depressão, pois ter servido a Deus com tanta fidelidade e perder o filho de forma tão fútil: “Meus pêsames Godofredo!” Disse com um tom de sensibilidade o pároco da igreja. Na missa, ele fez referência a Godofredo com as seguintes palavras, eu tentei sorrir, mas, minha mãe beliscou-me na barriga: “Psiu!” Amuado fiquei ao lado dela enquanto o vigário dizia: “Deus sabe de tudo e tudo que nos ocorre é vontade dele”. Eu tentei dar uma risada, mas, minha mãe acertou-me o topo da cabeça com um cascudo que até hoje me recordo.

Godofredo, após a passagem de seu filho, tornou-se como eu - um desconfiado de Deus. Desde criança que eu não entendia o fato das pessoas não puderem ver a Deus como vemos as pessoas; eu dizia com frequência: “Deus se ausentou e pôs a culpa no mundo”. Mas naquele bendito dia, nossas vidas, a as pessoas de nossa comunidade teria uma experiência que mudaria para sempre o rumo do povoado; e se alguém não entendeu foi porque não viu a santa.

O Riacho do Junco naqueles dias era de água tão cristalina que se via o fundo. Godofredo pescou sete grandes tilápias. Após a pescaria Godofredo se prepara para voltar para o povoado. Alguns macaquinhos comiam seriguelas num pé do dito fruto que ficava na margem do riacho quase beijando as águas. Os pequenos primatas comiam o fruto e jogavam os caroços dentro do riacho. Godofredo observava a festa dos macaquinhos, e ao se aproximar deles, eles gritaram e jogaram os caroços em Godofredo que tentou se proteger o que o faz perder o equilíbrio e cair nas águas frias do Riacho do Junco. A profundidade das águas do riacho era de dois metros; as águas do riacho puseram Godofredo cara a cara com a santa misteriosa. Ela tinha um manto azul que cobria seu corpo na cabeça e nas costas, na frente um vestido de santidade branco. Godofredo a recolhe com cuidado e nada de volta para a margem. Os macacos no alto do pé de seriguela fazem uma festa com o estranho visitante Godofredo. A macacada balançava os galhos do pé de seriguela fazendo as maduras cair, e elas caíam no chão, algumas, porém, na cabeça de Godofredo.

Godofredo traz a santa para casa. Sua mulher põe a imagem no seu altar doméstico. A santa sem nome estava, agora, ao lado de Santo Antônio, São Francisco, Nossa Senhora das Candeias e São Cosme e São Damião. Godofredo recobrou o ânimo e voltou a frequentar a paroquia. O povoado ficou maravilhado com o milagre que acontecera.
- Mulher, pois o homem num se levantou depois de ter achado a santa!
- E foi?
- Oh, você num sabe não?
- Não.
- Godofredo achou uma santa e agora ele anda com os ombros pra cima, e seu semblante voltou a ser feliz. Isso é um milagre! O povoado comemorou a vitória de Godofredo, no entanto, havia a cobra chamada curiosidade. O povo queria conhecer e ver a santa. As pessoas, no início, queriam só dar uma olhada, mas, depois, os doentes e miseráveis começaram a chegar, e com eles a paz da família foi embora.
- Padre Oliveira. Eu acho que num dá mais para a santa ficar lá em casa.
- Meu filho qual é o nome da santa?
- Num sei.
- Então como é que vou trazer para a igreja uma santa sem nome?
- Sua santidade não pode dar um nome para ela não?
- Bem, vamos até sua casa e vendo a imagem pode ser que eu a conheça. Padre Oliveira tinha um problema sério de saúde. O vigário reclamava para seus colegas que ficava até sete dias sem defecar. Muitas vezes o homem santo chorava no altar pedindo a Deus para evacuar com liberdade. Oliveira ao ver a imagem não teve referência sobre seu nome, todavia, dona das dores disse: “A sua santidade num vai benzer a imagem não?” O padre pegou na santa e fez o sinal cruz e jogou água benta nela. Ao devolvê-la para as mãos de das Dores, o reverendo sentiu cólicas abdominais e saiu em disparada para o banheiro que ficava fora de casa. O homem arriou todas as fezes que durante anos o perturbava. Godofredo, finalmente, se convence que a santa era milagrosa. O padre retorna aliviado e diz: “Meu filho é nas horas difíceis que Deus aparece; essa santa veio na hora certa; seu nome ainda eu não sei, mas cá entre nós, eu gostaria de chama-la de Santa do Rio”. A mulher de Godofredo interrompe o vigário dizendo de forma irritada: “Minha santinha merece um nome melhor!” “Nunca vi essa tal de Santa do Rio, não, Oxente!”
- Bem, por enquanto, levemos para a igreja e lá Deus vai nos dizer o nome certo dela. Com as palavras do vigário, o casal descansou.

A comunidade do povoado do Riacho do Junco passou a fazer devoção a Santa do Rio. Os milagres começaram a acontecer no seio da Paróquia de São Sebastião. O povo era curado, outros deixavam os vícios, outros nada recebiam, mas, por causa dos outros eles eram devotos da Santa misteriosa. A devoção a Santa durou do mesmo jeito por sete meses, depois, algo muito estranho aconteceu.

Minha pessoa, embora adolescente viu os milagres da Santa do Rio. Na verdade, a princípio estranhei depois vi a coisa com naturalidade, todavia, para algumas pessoas a santa passou a ser um fardo abominável.



Recordo-me como se tivesse acontecido hoje. Eu e Lopes brincávamos no oitão da igreja por volta das sete horas da noite. Minha bola, por acidente caiu no interior da igreja. Nos fundos ela tinha uma área de serviço que dava acesso à sacristia e da sacristia para o santuário. Não sei qual a razão, mas, a porta dos fundos estava aberta. Ao pegar a bola, tive a curiosidade de dar uma olhada na santa. Quando a vi, tive uma forte vontade de me aproximar. A santa foi mudando de cor. Seu vestido branco tornou-se preto e vermelho, e em vez da posição de beatitude, a santa fazia poses sensuais e dava gargalhadas. Fiquei sem entender. Depois ouvi o povo falar que algumas mulheres estavam visitando a santa durante a noite. Elas diziam “Padre, nós gostaríamos de velar pela santa essa noite”. Algumas filhas de Riacho Fundo tiveram seus casamentos recuperados, outras, saíram de casa. A confusão estava feita no povoado:

- A culpa dessa falta de respeito é de Godofredo! Acusou seu Bonfim.
- Não, num concordo não! Ele pensava que era uma santa. Disse dona Flores.
- E como é que Godofredo podia adivinhar que a santa ia ser duas coisas?
- Bem, a solução é jogar a santa fora. Ela está corrompendo a moral do povoado. O povo estava dividido: As mulheres que se chocaram com a santa de preto e vermelho queriam sua retirada, as que tiveram a conquista de alguém ou a salvação do casamento queriam que ela ficasse. A confusão foi tão grande que tiveram que chamar monsenhor Xavier que morava na sede do Município. Ao saber do fenômeno, o homem santo questionou a si mesmo: “Como o mesmo santo pode encarnar Deus e o diabo?”

A santa foi examinada por um grupo de teólogos vindo de Aracaju. Os mesmos constataram que o objeto era uma santa de barro, e que tinha uma idade avançada, mas, era apenas uma santa. Em momento algum a santa virou a mulher de preto e vermelho. Os religiosos retornaram para a capital sergipana certos de que se tratava apenas de crendices do povo.

Foi no mês de novembro do ano seguinte que a coisa ficou mais séria. Alguns maridos se queixaram de suas mulheres: “Essas mulheres quanto mais rezam mais ficam quente. Eu num tenho mais idade para isso não!” Muitos milagres foram realizados. Seu Antônio que não podia andar sem a ajuda de sua bengala foi curado na missa de domingo. Com os milagres e as contradições, a santa tornou-se um objeto de todos os tipos de devoção. As pessoas do culto afro queriam fazer uma devoção a santa à meia noite, pois, para eles a santa era, na verdade uma Pomba Gira. O vigário recusou o pedido. Os devotos do exu Pomba Gira foram reclamar a Federação na capital do estado:

- Estamos aqui para fazer uma acusação grave de preconceito e constrangimento religioso.
- Calma! Pai Jorge, Calma! Qual é o problema? Perguntou a Ialorixá “Mãe Cislene de Oxum”.
- Nós queremos fazer reuniões na igreja. Estamos apenas pedindo o nosso direito. O exu Pomba Gira é uma santa pela metade, ou seja, ela, pela noite, deixa de ser santa e vira uma Pomba Gira.
- Mas que é isso meu irmão! Isso é um absurdo! Onde já se viu um exu na casa de Deus!
- Cislene você conhece o oráculo de Pai Miguel que ele deu antes de bater as botas?
- Não.
- Então, ele disse que chegaria um dia que Exu ia morar no altar com os santos, e quando esse dia chegasse as pessoas seriam mais sinceras.
- Deixa de conversa rapaz! Exu num vai pra casa de Deus não! Jorge se irritou com a Ialorixá e virou a mulher em Pomba Gira, a mesma deu uma gargalhada e disse: “Não existe coisa melhor do que um exu na igreja!” A gargalhada da mulher acordou o povo do povoado que imediatamente trancaram as portas.

- Que foi mulher?
- Num ouviu não?
- Não!
- Deixa pra lá.

A federação entrou com medidas jurídicas contra a paróquia. A paróquia exigiu seu direito ao culto a santa porque quem a encontrou era católico. A justiça considerou o argumento da igreja mais justo. O povo do Axé ficou triste: “É, nós estamos impedidos de cultuar nossa santa na casa de Deus”.

A pequena paróquia do pequeno povoado do Riacho do Junco crescia. O povo da sede do povoado passou a frequentar a igreja de Riacho do Junco. A igreja ficava lotada. E com isso, o povo do povoado começou a reclamar e a dizer: “Vão para igreja de vocês!” A confusão estava feita. O povoado contra a sede, e a sede contra o povoado. Um grupo de afrodescendentes, finalmente, sequestrou a santa. Isso ocorreu no dia vinte e três de novembro numa noite de lua minguante. Arrombaram a porta do fundo da igreja e levaram a santa Pomba Gira.

- Miguelina, mulher, nossa santinha! Nunca a vi de Pomba Gira.
- Isso é invenção do povo!
- Num é o que mulher! Levaram a santa para fazer macumba na bichinha!
- Isso é uma abominação a Deus!
- Num é o que mulher!

O povo sente a falta da santa. Os casamentos começaram a desmoronar, as pessoas passaram a sentir ansiedade e ter depressão. A santa do Rio fazia falta ao povo do Riacho do Junco. “Mulher, eu quando rezava pra santa sentia um fogo por meu marido, ave, era uma coisa forte mesmo, mas, agora, estou fria que nem mármore!” Todo mundo tinha uma coisa a dizer para justificar a volta da santa.  Padre Oliveira recebeu um aviso que a santa estava no barracão de Pai Jorge. Segundo a denúncia ofertaram sete galinhas dispostas em sete pratos de barro. Na missa das cinco horas da tarde o vigário desabafa sua indignação:

“Meus irmãos do Riacho do Junco. Saibam que há pecado para morte, e este foi um deles. É uma blasfêmia contra Deus o uso de uma santa católica no culto de terreiro. Como pode Deus e o diabo estarem unidos, cúmplices! É um agrave forte. As pessoas que fizeram isso pagarão caro!” Na noite do mesmo dia, o barracão de Pai Jorge comemorava a volta de Pomba Gira para seu terreiro. Os tambores aturdiam o povoado, os foguetes estralavam no céu. Era noite de Maria Padilha, a rainha do Candomblé. No centro do altar do gongá estava a santa transformada em Exu. Em momentos alternados Pai Jorge fazia menção a santa e dava um banho de cerveja nela. As mulheres do terreiro e alguns homens viravam exu Pomba Gira. A festa estava bonita até a polícia chegar. O delegado Rodriguinho fora designado para investigar o caso. O terreiro calou seus tambores ao ver a viatura policial. Pai Jorge vira homem novamente para receber as autoridades.

- Recebemos informações que a Santa do Rio que havia sido subtraída da igreja do povoado está aqui.
- Não, acho que aqui num tem nenhuma santa não.
- Mas, mesmo assim, nós iremos dar uma olhada A policia procurou pela santa e nada. O povo do terreiro comemorava o livramento de dona Maria quando o relógio da igreja bate meia noite. Ouve-se, então, umas gargalhadas vindo de entre os santos no altar de exu. Era a Santa do Rio que havia virado Pomba Gira. A santa dançava e rodava a cintura feito uma cobra. Era de fato uma santa pomba gira. O povo do terreiro gritava de alegria e soltava foguetes. O povo da igreja estava triste, mesmo assim, o vigário garantia que banhando a imagem na água benta ela ficaria santa novamente, então, começa o tumulto para pegar a santa. Alguns irmãos católicos permaneceram em oração, enquanto isso o soldado Henrique que também era católico mais o soldado Juracy que era evangélico partiram em direção o altar, Pai Jorge se põe no caminho gritando: “Só sobre o meu cadáver, minha Mãe não vai sair da aqui!” os dois PMs ignoram as palavras do sacerdote e pegaram a santa do altar, esta dá uma risada nas mãos de Henrique que de imediato vira uma bicha cheia de palavreado esquisito. Coisas como: “Parem essa safadeza de vocês, quem não sabe que dentro de vocês existem uma santa e um exu, vocês não tem olhos para ver não?” Nessa altura, as coisas estavam sob máxima tensão. Aproveitando que Henrique estava espiritado, pai Jorge pega a santa das mãos dele. O soldado Juracy corre e pega a santa da cintura para baixo e Jorge da cintura para cima. No puxa-puxa, os dois partem a santa ao meio. O silêncio foi absoluto. Só se ouvia o coaxar dos sapos e os grilos cantando. Por alguns minutos ninguém disse nada. O silêncio no pé de serra do sertão falava muito alto.

Minha pessoa, embora menino pré-adolescente, um púbere observava o desfecho do problema. Jorge segurava um pedaço de sua pomba gira e Juracy o outro. “Agora não havia mais nada”. Pensei eu ansioso para entender o mundo dos grandes. Nas mãos de Juracy a santa se move, se contorce como que estive com dores de parto. Ouve-se o sofrimento de mulher no meio do tempo. Uns diziam que a voz vinha do mato, outros diziam que era imaginação. A metade nas mãos de Jorge faz a mesma coisa. O enfermeiro Valdomiro – aquele que aplica a melhor injeção em Campos pede aos dois as partes separadas alegando que o que estava para acontecer era um parto. O povo caiu na gargalhada sendo interrompida quando Valdomiro diz a santa: “Força, respire forte, isso!” O trabalho de parto durou alguns minutos que pareceram horas. O povo sem perceber intercedia pela santa ou pela pomba gira. Pela primeira vez as duas religiões choraram juntas por seus santos. A comunidade vendo a cena fraternal se juntou ao grupo que rezava para que a imagem da santa tivesse um parto bom. E eu, um menino ainda me perguntava: “Mas, o que vai sair daí?”

A santa deu a luz a duas crianças. O primeiro a sair foi um homem. Na sua cabeça havia dois toquinhos, parecia uns chifrezinhos, e a outra um Nossa Senhora toda de branco. Infelizmente a imagem da santa do Rio estava quebrada depois do difícil parto. O padre enterrou sua parte no cemitério ao lado da paróquia, a outra parte foi jogada no rio.

O povoado do Riacho do Junco desde então não fala mais de religião. Todos se respeitam e sabem que Deus tem muitas histórias para contar. Eu cresci e fui depois morar na beira da praia. Um dia caminhando na areia ouvi uma voz que me dizia: “Menino tens visto a Santa do Rio?” Na minha mente eu respondi que não. A voz de mulher continuou dizendo: “Então, veja!” Sim, meu amigo leitor, hoje sou velho, e digo de coração o homem imagina sem limites, então, cada um viva seu sonho em paz!

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A ESCOLA DE MANDALA

Quando fui trabalhar na Escola Freitas de Matos, todos chamavam Maria de “a divina”. Segundo os funcionários do turno da manhã, Maria era Deus na terra. Para os copeiros, zeladores, vigias, e outros; Maria Mandala foi a melhor diretora que a Escola Freitas de Matos tivera. Maria Mandala foi criada na melhor educação da Vila de Campos. Fez o catecismo, se confessou, e fez a primeira comunhão. Desse dia em diante, aos domingos Mandala comungava religiosamente. Seus pais, ainda vivos, exerciam uma influencia marcante em sua vida. A menina cresceu sem causar terrores para a família. Seu Adalberto dizia com muito orgulho: “Ainda vou ver Mandala como diretora do Freitas de Matos”. Mandala se tornou mulher com esse sonho na cabeça. Mandala nunca casou. Sua mãe, dona Rosinha da Lagoa da Porta, educou a menina para ser mãe de família. “Minha filha guarde o que você tem para seu marido!” Maria Mandala gostou de um moço que, de quinze em quinze, vinha a Tobias, contudo, a suspeita dele ter família em Ilhéus foi maior que o calor de seu sentimento: “Eu dou para qualquer um, mas homem casado jamais!” O tempo passou e Mandala nunca conheceu o amor. Agora Mandala era a diretora do Freitas de Matos – A escola que dialoga com o diverso. Quando bati à porta do Freitas de Matos com o termo de posse nas mãos, vi a figura de uma mulher branca, cabelo um pouco crespo, pele pintada de sarnas, e estatura quase a minha, um metro e setenta, eu acho. Ela usava calça jeans, uma camisa Pool cinza e sandálias de couro compradas na feira. Ela me viu no portão e veio abri-lo para minha humilde pessoa. - Bom dia! Disse Mandala com a boca entre aberta esboçando aquele sorriso profissional. - Bom dia! Disse eu. Ao olhar em seus olhos pela primeira vez senti a dor de uma faca afiada varando meu peito. - Eu sou Plínio, o novo oficial. Estendi minha mão com a carta nela. Mandala olhou o documento e perguntou. - O que você sabe fazer? Eu respondi que não sabia e que só vendo no trabalho é que poderia ver o que eu iria fazer na escola. - Tudo bem; venha na segunda feira. Sai da Escola com o coração cheio de ansiedade e restrições. Eu havia sentido que minha ida ao Freitas seria o começo de uma triste história. Por algum tempo fiquei sem entender o porquê que minha opinião sobre Mandala era diferente do resto da escola. Enquanto Josefa da cozinha elogiava a Maria Mandala, eu via a condição de trabalho dela e a forma como a famosa diretora geria as coisas por ali. Josefa um dia disse para mim: “Plínio, meu filho, você sabe né; ela tem esse jeito rude, ignorante, mas, é boa pessoa”. Percebi, então que a primeira motivação que inspirava as pessoas era o medo. Os funcionários temiam a Mandala porque ela havia prejudicado alguns colegas no passado, assim, eles tinham certeza que ela podia fazer novamente. Já a segunda motivação era o benefício que Mandala dava a uns em detrimento dos outros. “Mandala num gosta que a gente coma a merenda”. No entanto, alguns colegas eu via com a boca cheia de pão e outras merendas. “É, parece que nossa diretora trabalha com dois pesos e duas medidas!” Foi o que Jerônimo disse montado em uma moto velha. Jerônimo era o funcionário de máxima confiança de Maria Mandala, porém, ele não perdia a chance de dizer suas coisas sobre a diretora. - Maria Mandala vai acabar com essa folia nos fundos da escola. Vocês vão ver! - Jerônimo, onde estão as garrafas de água que você deixou nos freezers semana passada? Jerônimo ligou a moto enchendo a área inteira de monóxido de carbono. - A jararaca mandou tirar tudo! Jerônimo falou mais com os olhos de que a boca. Sua expressão facial foi a de alguém muito decepcionado com Mandala. A Escola Freitas de Matos passou quase vinte e cinco anos nas mãos de Maria Mandala. Quando eu cheguei, ela estava saindo, contudo, o povo dizia, Mandala vive saindo. Mas, o pouco tempo que eu fiquei, eu aprendi que tudo que precisava era ser eu mesmo. De nada precisei de Mandala e se precisasse ela não me ajudaria. Cinco meses passaram e eu via que tudo que fosse para me atrapalhar Mandala fazia. Não sei o porquê, mas, Mandala se tornou em meu inimigo número um. Na minha presença, uma máscara cobria o seu rosto, contudo, seus planos para mim eram maus. A mulher via na minha pessoa a imagem do diabo. - Josefa, num gosto desse novato! Você viu que ele defende gays, maconheiros, macumbeiros e todo tipo de desgraçado social? Meu pai sempre me ensinou, “quem se junta com porcos farelos come”. - Num é mulher! E eu estou sabendo por boca de terceiros que ele já foi casado e é separado da mulher. - Bem que eu sentia um pressentimento; minha intuição não falha. Esse homem é um tarado, eu vejo como ele me olha! Mandala se ajeita no vestido um tanto folgado na cintura. Agora para Maria Mandala o novo funcionário era a encarnação de toda maldade, e um péssimo exemplo para a escola. Mandala e seu grupo resolveram tornar minha humilde estada naquele estabelecimento em um verdadeiro inferno e assim foi... Com o passar do tempo fui me acostumando com toda sorte de ofensa. Um dia, ela me pôs para digitar umas coisas no computador faltando alguns minutos para encerrar a aula. Isso me fez passar por um constrangimento muito grande perante os professores que queriam ir embora. Outra vez, ela me chamou para ficar encarregado do portão. - Sabe, estamos precisando muito de gente na porta. Vou lhe colocar na porta então. - Mas, meu trabalho é na secretaria cuidando dos documentos. - Mas, aqui quem manda é eu; você vai para a porta! Minha humilde pessoa foi para o portão até que a diretora foi abordada por um ex-aluno de uma escola onde dei umas aulas. - É verdade que o professor agora é porteiro? Foi você que desviou sua função? Parece que isso a fez lembrar-se de um passado não muito fácil. As pessoas que trabalhavam em outras escolas da mesma rede estavam acostumadas com um pequeno recesso em julho, mas, ela não deu nada no Freitas. Somente algumas pessoas tinha acesso ao descanso nessa época. As pessoas da cozinha achavam isso muito ruim, no entanto, não ousavam abrir a boca contra a diretora. Para todos os efeitos tudo que Mandala quisesse seria acolhido pelo grupo, assim, minha situação se tornava ainda pior – todo o staff ficou contra a mina humilde pessoa. - Esse cara é louco, você não percebe que ele tem problemas mentais? - A coordenadora Zelma Hercules me disse que ele devia tirar licença para se tratar. - Mas, se tratar de que? - Num sei! Apesar das dúvidas e opiniões diversas, as pessoas que andavam na escola não entendiam o jeito do rapaz e o julgavam pelo que viam. Faziam isso por pura maldade, ou habito social. Parece que o povo de Campos se compraz em destruir a imagem dos outros. Como sofri por causa disso! A escola Freitas de Matos era uma escola que abria o dia letivo fazendo três preces: Uma para o Pai (Pai Nosso), outra para a Mãe (Virgem Maria), e depois fazia uma média com o anjo da guarda. As crianças oravam mecanicamente; a maioria delas nem se quer sabem o que é isso “Pai Nosso que está nos céus”. Na verdade eles veem o inferno terrestre com seus pais desempregados, e uma sociedade com a renda concentrada que torna suas pequenas vidas, pequenos grandes hades aqui na terra – a terra de Campos do Rio Real. Enquanto Mandala me torturava diariamente, minha humilde pessoa se dedicava ao trabalho da escola e ao estudo. Fiz cursos, me formei, andei para frente. Mas, mesmo assim, para o povo do Freitas, minha pessoa não era digna de nada, uma vez que eu olhava o mundo com alteridade. - Professor, meu pai me dizia: “Quem usa tatuagem é bandido”. A colega de trabalho disse isso por causa de minha pequena tatuagem no braço esquerdo. Sempre gostei de karatê, por isso mandei desenhar na minha pele o dragão do filme de Bruce Lee. - Não é bem assim não. Veja, tem tanta gente importante no mundo que usa tatuagem e são pessoas honestas, direitas. Isso é muito relativo. Não é o gosto estético que diz das pessoas, mas, seus verdadeiros valores morais. Ao ouvir minha última frase, a mulher frangiu as sobrancelhas e se retirou com pretexto de ir atender um aluno que chegara. Perto do dia da consciência negra, a coordenadora, dona Zelma Hercules me abordou para saber se minha humilde pessoa tinha material sobre a cultura afro. “Nós somos uma escola aberta para o mundo”. Eu, educadamente, a respondi dizendo: “Falar do afro sem ler Nina Rodrigues, ou, o famoso Reginaldo Prandi é dizer besteira”. Parece que ela não gostou muito da ultima parte, ‘dizer besteira’. A festa da consciência negra foi totalmente sem consciência, e reforçou ainda mais a imagem do negro como um ser submisso ao branco, um ser orbitante de uma raça superior. Havia dois Pais de Santos convidados especialmente para o evento – Parece que o povo pensa que o negro só produziu religião, capoeira e acarajé, parece até que o negro quando morava na África não tinha vida, passou a viver, então, no Brasil. Os Pais de Santos foram apresentados, depois, eles fizeram uma exibição de músicas sacras do Candomblé, o que foi muito bonito por sinal. Os professores não se interessaram, e nem se quer eles se aproximaram dos sacerdotes religiosos para lhes fazer algumas perguntas, o que seria perfeitamente normal. Minha humilde pessoa foi fazer as venhas aos irmãos, filhos de nosso Pai Oxalá. - Muito bonita sua apresentação. - Ah, eu adoro o Candomblé. Fui feito na casa de mãe menininha aqui na Bahia. - Eu sou Calvinista, mas, admiro muito a luta de vocês. - Que luta? - Essa por espaço social, por identidade? - Ah, professor, Nós somos periféricos desde os tempos da senzala. - O amigo fala da senzala como se ela não existisse mais. Disse isso para ele um tanto surpreso com sua alienação. E aí continuei... - Quem vai ao seu Ilê Axé de quatro em quatro anos, não são aqueles que podem mudar essa realidade? - Sim, sabemos, mas, eles só querem voto e pronto, ou, uma ajudinha do santo. Finalmente percebi que nosso babá não tinha ferramentas para cavar as camadas ideológicas que escondem a verdade do homem comum. Contudo tive uma curiosidade e perguntei: - O Babá estudou onde? Onde fez o fundamental? - No Freitas de Matos. Aqui mesmo, por isso fui convidado. Eu amo essa escola, ela dá chance para todos. Adoro a nossa diretora Maria Mandala, nunca me esqueci de sua dedicação a moral e aos valores maiores da Vila de Campos. O sintagma, ‘dedicação a moral’, me levou a Nietzsche e sua filosofia corrosiva: “A moral é a obediência cega aos costumes”. Pensei, é claro, que o filósofo não estava negando a necessidade de um código, ele estava nos chamando atenção para a relação cultura - moral, e que esta última devia ser resultado de uma abordagem a posteriore da realidade, ou seja, a moral deveria ser inspirada pela razão e não pelos mitos culturais. Despedi-me do irmão sacerdote e fui para minha sala pensar minha humilde vida. Enquanto isso, os grupos se formavam pelos apertados corredores do Freitas de Matos. As pessoas queriam saber o que o professor tinha conversado com os macumbeiros. O tempo passou, e passou muito rápido. Pensei que Mandala se aposentaria em dez anos. Quinze longos anos se passaram, e a mulher estava sentada naquela cadeira vermelha de rodinhas pretas. Um dia pensei: “Muda a política e ela fica no mesmo lugar”. “Essa mulher deve ter parte com o cão”. Pensei novamente. Encomendei um ebó para Exu na intenção dela; eu não acreditava muito nessas coisas, mas, no sufoco tudo é válido. O ebó foi arriado, e nada da coisa ruim sair da frente. Um dia de sábado, pela manhã, eu estava na escola pagando um dia que precisei faltar. Eu estava sozinho digitando umas coisas quando o portão abre e Mandala aparece na sua sala que ficava a uns vinte metros da minha. Ela usava uma camisa branca de algodão, sem nada por baixo. Um short jeans azul claro, muito apertado por sinal, pois, me chamavam a atenção para suas pernas e cintura, que eram bem interessantes. O perfume que Mandala usava encheu minha sala e me fez ver quem havia chegado. - Ah, é você? Bom dia! Dei bom dia por educação. - Bom dia Plínio! Pouca foram as vezes que ela me chamou pelo nome. Então fiquei com as antenas em pé. - Eu quero que você passe as notas da quinta série para o mapa. Disse ela com um tom calmo. Aquele tom calmo sempre me irritava porque depois dele viria alguma ironia. - Certo vou providenciar. Quando saia da sala ouvi novamente sua voz dirigida a mim. Ela estava calma, e continuava assim. - Tome a caderneta! Aproximei-me novamente e peguei a caderneta de sua mão. Isso me fez olhar em seus olhos e ver que ela estava sem sutiã. A forma arredondada de seus seis rosados me deram água na boca. Eu nunca havia visto aquilo – Mandala era uma mulher muito apetitosa. A imagem da tirana, por um instante, saiu de minha humilde mente dando lugar à imagem da mulher sensual, pronta a copular. Tirei esses pensamentos da cabeça e retornei a minha sala e nela fiquei quieto pedindo a Deus que fizesse aquela mulher ir embora. Ouvi a porta de sua sala bater. Pensei – “Ela já foi. Graças a Deus!” Depois ouvi o portão trincar o cadeado. Isso me foi um alívio. Finalmente, estou só novamente. Folgo o cinto das calças e retomo as minhas atividades. Alguns segundos depois; vejo que a fragrância do perfume da moça continuava no local, agora, estava mais forte até. Deixei meu computador sobre o birô e fui em busca da fonte daquele cheiro – o que ela fazia ali? Ao chegar à porta de minha sala fui interrompido bruscamente. Mandala estava a me esperar. Seus olhos fitos em mim irradiavam uma vibração que ora parecia tesão, ora parecia ódio. Ela me empurrou para dentro de minha sala e trancou a porta. Nós dois estávamos completamente sós na Escola Estadual Freitas de Matos. - Venha safado, venha devorar a mamãe! Enquanto sua boca se ocupava com as palavras, suas mãos despiam seu corpo rosado com pintas de sarna espalhadas por toda a epiderme. Pensei eu comigo mesmo no silencio de minha máscara social: “Que diretora gostosa!” A fera continuou seu ritual copular, minhas calças estavam no chão. Eu estava alterado e a mulher olhava o falo com muito gosto; as gotículas de água caíam naturalmente de sua boca enfeitada com uma dentadura de primeira que deve custado uns quatrocentos reais. - Venha seu pervertido, venha me devorar! Nessa altura, a mulher estava despida sobre meu birô com minhas nádegas presas por suas unhas bem cuidadas e pintadas de vinho. - Estou queimando por sua causa. O diabo anda com você, desde o primeiro dia, eu sabia que você era uma tentação para escola, seu safado! Venha me comer pervertido! Devo confessar que não resistir a pulsação forte na minha glande que parecia que meu membro ia derramar seu néctar de forma muito prematura. O mesmo penetrou no seu canal sentido suas entranhas e causando-lhe indizíveis prazeres. A mulher gemia e suava, dizia palavras obscenas o tempo inteiro; isso me fazia ainda mais rijo e sedento. Nossos corpos se fundiram por muitos minutos num movimento copular que nem o vento podia atravessar. Parecia que estávamos um dentro do outro. - Coma-me safado! Quando ela dizia isso a pulsação fálica aumentava ainda mais, e eu me renovava para mais uma aventura. Deixei a mulher sonolenta sobre o birô e fui ao banheiro me lavar. Quando voltei, ela havia saído. O barulho do cadeado a denunciou para mim. Voltei ao meu serviço e vi que o computador havia gravado tudo. “Mandala estava em minhas mãos!” O tempo passou. Percebi que mandaram trocar o computador de minha sala. Pensei novamente: “Povo maldoso, acha que vou usar o filme contra a mulher”. Realmente, seria o fim de sua carreira, mas, esse jovem filho de Tobias não tinha esse coração. Ficou em minha mente todo aquele momento mágico; eu estava só, precisava daquilo, por alguns instantes senti minha vida de volta; agora, Mandala podia continuar em paz. A confraternização de fim de ano veio logo. O ano tem passado muito rápido. Estamos perdendo a noção de tempo. Eu adoro enroladinhos. Lembro-me que havia muitos deles na Escola naquela festa de fim de ano. Comi, bebi, e depois fui para a minha vida solitária. Em casa senti calafrios a noite toda. Uma vontade forte de vômito me acompanhou o dia seguinte todo. Decidi ir ao hospital, mas, era tarde demais... - Mulher, sabe quem morreu? - Num foi Plínio, aquele doido que trabalhava no Freitas. - Rapaz, dizem que ele se matou! Foi chumbinho que ele tomou. Como foi uma dose muito pequena, morreu aos poucos. - Desde o começo eu sabia que ele era doido. Só podia dar nisso. O pior uma pessoa como essa passou pela nossa escola. É o que dá concurso público! Antigamente, os políticos colocavam gente de bem para trabalhar na coisa pública! Era muito melhor! - É verdade mulher. Mas, coitado, num é? - É sim; era um “siscero umano!” - Isso mermo...

sexta-feira, 27 de julho de 2012

A VITRINE

A VITRINE Eu me levantei cedo aquela manhã de segunda feira. O natal estava chegando. As pessoas encantadas pela fada natalina transitavam para todos os lados no centro comercial da cidade modelo do Brasil – Aracaju – A princesa do Nordeste. Os anos noventa não foram muito bons para a minha humilde pessoa. Engordei, minha mulher saiu de casa e foi morar com um conterrâneo de Carira. A mulher me deixou na mão, sem filhos, sem companhia, e o pior, parece que perdi a fé que vou arrumar outra. Ninguém olha para mim. Será que sou tão desagradável assim? Será que a feiura fez morada nesse filho de Dores? Meu trabalho não ficava distante de minha residência. Por isso eu não pegava ônibus. Ademais, morar no centro me dava a chance de sempre dar uma pequena caminhada pela cidade mais mimosa do Brasil. A Aracaju dos anos noventa crescia na direção sul. Tudo de bom ia para o sul da cidade. Os maiores prédios, os melhores condomínios, as ruas urbanizadas e bem drenadas. O sul de Aracaju se tornou uma referência de qualidade de vida. Contudo, para mim, nada substituía o velho centro. O velho centro me dava ar para respirar. Sempre apreciei caminhar por suas ruas e me sentar em suas praças e ver o povo passar. Como dizia, acordei cedo aquela segunda feira. Tomei a Rua lagarto até a esquina já avistando a praça da matriz. Segui em frente em direção ao meu trabalho no Instituto Histórico. Aquela região tem muitas lojinhas. Todas elas com suas vitrines enfeitadas. Na época do natal ficam ainda mais bonitas. Em uma loja de eletrodomésticos havia uma moça na vitrine limpando tudo com muita atenção e força de vontade. Pela fisionomia da jovem, ela realmente fazia o que parecia estar fazendo. Não sei por que, mas, fui agraciado com a benção de vê-la. Ao chegar ao Instituto, antes de abrir o portão de ferro, levantei a minha cabeça e olhei adiante, por acaso, olhei para rua. Lá, do outro lado, estava a pequena deusa na vitrine cheia de filmes e câmeras. Ela olhou na minha direção. Pensei que ela correspondeu o meu olhar. Então disse eu para mim mesmo: “Certamente você sai às seis. Quem sabe a gente se ver?” O dia no Instituto passou muito rápido. A única coisa que achei chata foi a conversa da zeladora que entrou em minha sala contando-me uma história muito esquisita. Ela disse que saiu na televisão que as pessoas estão morrendo de depressão. Essa doença, segundo a zeladora, vai matar muita gente. - Até os cachorros, seu Elpídio, tem depressão. O cachorro da minha vizinha ficou sem latir dois meses. - É uma coisa muito estranha dona Josefa. Até os bichos têm alma. O relógio de parede do salão principal deu seis horas. Levantei-me, tranquei tudo, e sai em busca do rosto que me deu um dia de alegria. Olhei a vitrine. A moça não estava mais lá. “Perdi o dia então”. Caminhei de volta para casa. Meu corpo estava pesado e meus pensamentos vagos. Nem percebi o transito ou as pessoas. Tudo que queria era chegar a minha casa e tomar um banho frio. Os pardais amanheceram cantando na manhã de terça feira. A Rua Lagarto estava cheia de pessoas indo e vindo. O dia seria longo para muita gente. Rapidamente me troquei, tomei café e segui caminhando para o trabalho. Logo percebi que as ruas estavam quietas. As pessoas passavam com o olhar vago. Eu vi um homem que conversava sozinho, em pé, olhando para um prédio alto. Eu tinha alguns minutos, então, decidi ver o que havia naquele prédio. - Moço por que o senhor está olhando e falando sobre o prédio? - Bom dia! - Moço houve alguma coisa? Quer que eu ligue para a delegacia? - Bom dia! O homem disse bom dia até eu me irritar e segui rumo ao prédio para dar uma olhada. A entrada do edifício não tinha funcionários. Um gato preto deitado sobre o balcão dava as boas vindas aos visitantes. A porta do elevador principal estava ao lado do balcão. Entrei nele, subi uns andares, sai do elevador, e iniciei minha busca. Cada sala tinha uma porta e uma vitrine. A vitrine ocupava o espaço de quase toda a parede. Algumas estavam fechadas outras abertas. Sobre a porta da sala havia um número. Xab89ztw1 era o número da vitrine onde havia bonecos humanos representando um parto, a criança tinha a cabeça exposta saindo do canal vaginal. Seu rosto melado de sangue me chamou a atenção. Afinal, o que é isso? Que loja é essa? Resolvi entrar para ver melhor. Um homem velho, de cabelos espalhados pelo rosto me atendeu. - Bom dia! O rosto pálido do estranho senhor enrugou-se diante de mim. - Bom dia! O amigo passa bem? - Sim, o que o cavalheiro deseja? A voz do homem parecia a de fita cassete com o cabeçote sujo. - Eu estou só olhando. Vocês vendem o que mesmo? O homem tentou explicar, mas, seu rosto enrugava muito. Ele reclamou de algumas dores. Então eu disse: - Ah, entendi. Muito obrigado! Na verdade não entendi nada. O homem falou algo sobre... Sobre o que mesmo? Esqueci o que ele falou. Sua face sofrida me tirou a atenção. O encontro com o senhor rugas me fez lembrar a moça da vitrine. Aquele rosto bonito e moreno de sol se fixou na minha mente. Toda vez que ele aparece, meu coração acelera. A outra vitrine tinha animais de bonecos de espécies variadas. Uma águia bem grande nos dava as boas vindas da vitrine. Havia alguns animais empalhados. Isso me deu náuseas. Abri a porta da sala. Logo na entrada vi um homem sentado numa cadeira de rodinhas de costas para a porta. - Bom dia! O senhor não me respondeu. Tentei novamente. - Bom dia! A mesma coisa. Caminhei na sua direção e vi seu rosto virado para um aquário que estava sobre uma pequena mesa. Sua boca estava cheia de algodão. Seus olhos estavam tão fixos no aquário que as pálpebras não piscavam. Não ouvi respiração no homem. Corri até a janela para vomitar. A janela estava travada. Vomitei no chão. O enjoo parou. A terceira vitrine tinha uma boneca feminina. Ela estava com a boca aberta mostrando os dentes superiores como que estivesse conversando. Aproximei-me da mesma para ver melhor e para minha surpresa o rosto da boneca era idêntico ao rosto da moça da loja de eletrodomésticos. “Mas, como?” “Eu não entendo”. Entrei na sala para falar com alguém. Não havia ninguém. Resolvi então esperar alguém surgir. Sentei-me em uma cadeira defronte o birô e esperei. - Sim, moço? Em que posso ajuda-lo? Uma voz feminina me desperta. O sono me dominou devido o silêncio do prédio. Naquele lugar as pessoas eram totalmente indiferentes ao meio externo. O outro se tornou em uma coisa na sala ou no quarto ao lado. Levantei minha cabeça e vi que a moça que falava com minha humilde pessoa; era a boneca da vitrine, ou, melhor dizendo, era a moça. Será? Tenho que admitir: “Eu não sei?” - Bem, eu vi um homem lá embaixo e decidi ver o que estava acontecendo. Entendeu? - Não! Seja mais claro? - É, Olha! Eu já vou, eu não queria incomodar! Tentei me levantar da cadeira, mas, aquele rosto me grudou de volta nela. O rosto exercia uma força incontrolável sobre mim. “Mas, que coisa linda!” Pensei. - Por que tem um homem empalhado ali na outra sala? - Não, não há homens empalhados aqui. Não vendemos esses produtos. - Você não é a moça da loja de eletrodomésticos? Limpei a voz rouca duas vezes antes de perguntar. - Não, quem você pensa que eu sou? - A moça da loja de eletrodomésticos. - Que loja de eletrodomésticos. A cidade tem tantas lojas de eletrodomésticos e tantas moças. Por que eu seria ela? - É. Pensando desse jeito. É mesmo. Então, já vou. Minha timidez sempre me atrapalhou. Eu queria ficar lá, mas, o meu medo de falar besteira dizia: “Saia da aí!” Ela sorriu para mim. Aqueles lábios rosa me davam água na boca. Aquele cabelo de índia, totalmente natural, sem pintura ou chapa, que beleza! E a fragrância que emanava de seu corpo escultural me prendeu novamente à cadeira. - Temos vitrines de todos os tipos. Até de agência funerária. Aqui fazemos negócios. - Então não há nada de errado aqui? - Não! Acho que não. Nós dois nos olhamos por um instante. Ela me olhava como que me conhecesse e eu fazia o mesmo. A moça se levantou deu a volta no birô e se aproximou de mim. Fixou seus olhos em mim e disse: “Você é real não é?” “Claro!” A moça tirou sua roupa cuidadosamente e sensualmente investiu sobre mim. A cada parte de seu belo corpo desvendado perante meus olhos, o meu velho coração acelerava, e um calor acompanhado de desejos entranháveis esquentava o corpo gordo desse filho de Dores. Ela me abraçou com o desejo determinado de me ter. Eu não resisti aos instintos e cedi ao fogo da paixão. - Seu Elpídio! Seu Elpídio! - Sim! Elpídio passou a mão no rosto, abriu bem os olhos e viu dona Josefa com a vassoura na mão. - Seu Elpídio, já escureceu. Você não vai embora? Elpídio passou pela vitrine onde a moça estava. Não havia ninguém. A loja estava fechada. Elpídio voltou para casa. Tomou banho, comeu alguma coisa. Depois foi para a televisão: “Seca em Sergipe”. “Chacina no Hospital João Alves – Morreram três pessoas”. “O Governo Federal anuncia corte nos gastos públicos”. “A Organização Mundial de Saúde diz que, em 2012, cinco milhões de pessoas morrerão de depressão no mundo”. “O que mais causa a depressão é a solidão segundo a Revista Psycology de Londres”.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A VIDENTE

“Eu não posso contar tudo que vi e tudo que senti. Só posso dizer que eu vi; e o que eu vi, mudou tudo...” Para Ágatha. Desde doze anos, a menina morena, de cabelos pretos e pele branca européia caminhava para a pequena Igreja no centro da cidade. Ela era cristã protestante; congregava na Igreja do Evangelho Santo. A moça esperava a volta de Cristo a qualquer momento. Suas orações nunca cessavam, fosse pelos seus familiares, ou pelos seus amigos, ou inimigos. Talita era uma moça evangélica que tinha certeza de sua salvação; a palavra de Deus, em suas mãos, era descortinada diante de olhos escolados ou não. Diz o povo que um dia a moça portadora de uma grande e misteriosa sabedoria explanou o evangelho para um doutor da universidade. Seus pais enchiam o peito de orgulho por sua filha pequena. Eles davam glória a Deus por tudo todos os dias. - Sabe Geraldo! Acho que Talita tem o chamado do Senhor. - Eu também acho mulher. Mas deixa a coisa aflorar! Geraldo e sua mulher Zefinha eram pessoas de classe simples. Tinham o bastante, nada de riqueza. O casal também servia ao Deus vivo com todo o coração. Tobias Barreto, nessa época, crescia muito rapidamente. O comercio crescia como as novas Igrejas. Em cada rua do município havia uma. O comercio de Tobias se expandia como a fé de seu povo. O Pastor Elenildo, um dia, disse: “A fé é tão necessária como o dinheiro. Com ela se abre as portas do Céu, e com ele, as portas da terra”. Talita entrou na igreja naquele domingo como era de costume. Cumprimentou a todos, deu a Paz do Senhor a todos, e se dirigiu ao seu lugar nos bancos da mocidade. O culto logo iniciou com a oração do prelúdio. O pastor levantou a voz em prece pela congregação e por todos os tobienses. Em seguida um grupo de jovens toma a direção e conduz o louvor. Talita acompanhava tudo com reverência e temor ao Senhor. Para a moça aquele seria mais um culto a Deus em sua vida. O pastor Elenildo, um homem de bem, considerado por toda a comunidade, pega a palavra da pregação. O homem brilhava naquele púlpito. Sua testa branca suada refletia o suor de uma alma servindo a seu Deus. “Meus caros, Em face do momento em que vivemos, urge fazermos um enfrentamento da realidade seguindo coordenadas evangélicas. O apostolo não falou, por acaso, que nos dias finais as pessoas zombariam da Palavra e escarneceriam do próprio Senhor. Vivemos esta hora, amados! Vivemos o tempo da apostasia...” A pequena Talita de olhos fechados e contrita tem uma visão: A pequena via uma forma azul no céu da igreja. Como se do teto saísse uma pessoa cuja luz era azul da cor do céu. O ser divino descia em espiral até o meio do povo. Este sem nada saber dava glória a Deus repetida vezes e intercalavam a louvação com aleluias vigorosas que fizeram as paredes do santuário tremer; Talita se assusta ao abrir os olhos. Fecha novamente os olhos e nada mais ver. Seu coração ardia como uma tocha de fogo. Mas, nada disse para ninguém. Todos foram embora, e ela também. Em casa a menina pergunta ao Espírito Santo sobre aquela visão: “Meu Senhor o que eu vi veio de ti? Se foi, o que foi que eu vi? Pois não entendo!” Zefinha havia preparado um cuscuz. A família, unida e feliz, comi antes de ir para a cama. Na cama, a menina repassa sua visão: “Um ser parecendo do sexo feminino desce do céu com um sabre na mão. Ela fazia movimentos espirais. Sua cor era azul celeste. Sua presença no santuário fez o povo, mesmo sem nada ver, louvar a Deus”. A Igreja do Evangelho Santo de Talita, embora, renovada tinha muitas restrições às manifestações do Espírito Santo. O Diácono Celestino quem o diga. Muitos pastores perderam seus pastorados na Igreja do Evangelho Santo. Todos que vieram com suas revelações do Espírito Santo foram perseguidos. Celestino presidia os diáconos há quase vinte anos. Ele nunca perdoou um místico de Deus. O homem cria na visão racional das escrituras e que a razão é o motor para a compreensão das verdades divinas. Talita com muita cautela procura dona Vera, a presidente do grupo de oração da igreja. O povo dizia que Vera falava em línguas estranhas. Diz o povo que ela entrava em transe e falava com o Espírito Santo nas línguas dadas por Ele. A igreja estava nitidamente dividida nessa questão, a xenolália. Os que se diziam bereanos “os que conferem as escrituras”, e os pentecostais - os que acreditavam nos dons do Espírito Santo. No entanto, a igreja como um todo era considerada fundamentalista. O movimento renovado não criara raízes na Igreja do Evangelho Santo. - Dona Vera eu gostaria de te contar uma coisa. Faz uma semana que tive uma experiência e estou sem entender. Disse Talita. - Minha filha você é uma moça nova, ainda menina, o que foi que houve? - Dona Vera, apesar de ter apenas doze anos, eu sei o que vejo e o que escuto. - O que houve minha filha? O pastor brigou contigo? Foi algum irmão ou irmã da igreja? Conte! - Eu estava no culto neste último sábado e vi algo; algo sobrenatural. Acho que foi o Espírito Santo. - O Espírito Santo? - Sim! - Por que Ele falaria com você? Tão novinha! Acho que o Espírito Santo fala com o Pastor, não? - Dona Vera eu vi descendo do teto do santuário a figura de uma mulher. Ela era toda azul celeste; tinha um sabre na mão. Quando a vi, o povo deu glória a Deus. Depois olhei; vi vários pastores sentados, uns a direita, outros a esquerda de nosso pastor. Uns subiam de suas cadeiras e depois desciam. Outros ficavam da mesma altura. Acho que o Espírito Santo está dizendo que nossa igreja precisa de humildade. - Minha filha! Nossa cabeça imagina tanta coisa estranha. Você está gostando de algum garotinho de sua idade? Talita viu que a presidente do grupo de oração nada lhe acrescentaria. A mulher não conseguia ver ou sentir nada sobre o mundo do Espírito. A menina decidiu ir para a Igreja e orar a Deus para Ele aliviar sua alma, ou se fosse o caso, perdoar seu orgulho e vaidade. “Senhor, Meu Deus, Quem é tua pequena serva para ter uma Palavra do Espírito Santo para tua Igreja? Perdoa-me meu Deus!” Nesse ponto Talita chorava pela sua experiência que ela não entendia. Nesse estado de profunda oração, a moça, com os olhos fechados, ver por toda a Igreja sapos, cobras, e outros animais. Os animais estavam espalhados pelos os cômodos da igreja. Defronte ao púlpito havia um macaquinho preto de cabeça branca. “Esse é aquele responsável pela estripulia do pastor. Ele deve, e seu débito não será pago. Isso será sua queda. Medite sobre os outros animais e saberás o que há”. - Quem fala comigo? Quem fala comigo? Gritou Talita sem sucesso de respostas. A moça saiu do templo com o coração ardendo. O sol subia no céu. Era quase meio dia. Talita vai para o missionário refletir sobre o ocorrido. Nessa época o missionário que era um pequeno zoológico de Tobias recebia pessoas todos os dias. Talita estava só. A moça sentava debaixo de um pé de eucalipto, ao lado da jaula dos macacos. “Meu Deus, O pastor vai cair e eu posso ajudá-lo, mas, quem vai acreditar em mim?” Um macaquinho danado deu uma risada forte. Parecia que ela dizia alguma coisa para a pequena. O vento soprava forte no eucalipto. Saia um zumbido intenso e agudo. Era como se o tempo chorasse. Dizem que quando tempo tem as mãos cruzadas, ele chora. Às vezes alguém escuta o choro do tempo. Talita disse para si mesma: “Eu vou avisar o pastor”. - Pastor Elenildo! - Sim! - Deus pode falar com uma criança de doze anos? - Sim, pode! - Então, Ele me disse que sua pessoa vai cair se não pagar sua dívida! - Calma! Calma! Menininha! Eu devo, mas, o dinheiro será levantado! No momento já tenho a metade. O restante o diácono Celestino garantiu que me conseguiria. Então fique tranquila que seu pastor não vai escandalizar o nome da Igreja. Talita voltou para sua casa de cabeça baixa e não mais quis saber de suas visões. Dois anos passaram o pastor Elenildo foi chamado a depor na delegacia sobre três cheques sem fundo. O nome da Igreja foi parar nos jornais. O escândalo foi grande. Naquela época não havia políticos prontos para abafar as coisas. Talita sabia que suas visões faziam sentido, no entanto, decidiu esquecê-las. A Igreja passou pouco tempo sem pastor. Fernando veio de Alagoas fazer a diferença no Senhor. Era um jovem solteiro cheio de vida e de vontade de trabalhar. “Irmãos, quando senti o chamado do Senhor para essa obra; eu orei muito; e o senhor me respondeu em sonho. Eu estava, aqui, em Tobias, e na minha frente estava essa Igreja. As pessoas entravam aos montes. Muitas almas serão salvas”. A Igreja quase que entrava em delírio de tanta alegria com o novo pastor. - Mas, o homem é solteiro! A bíblia nos diz que devemos fugir de toda a aparência do mal. Como ele vai vencer a tentação da saia? Questionou o diácono Celestino aos outros diáconos. O tempo passou. A jovem Talita tinha somente quatorze anos agora. A menina foi ao culto da mocidade em um sábado de verão quente. A igreja estava cheia de jovens de várias religiões. Fernando era um bom pastor e fazia um excelente trabalho com a mocidade da Igreja. Novos instrumentos foram comprados e organizada foi uma banda de Jovens. Era chamada de “Banda Esperança”. O culto começou às sete e meia em ponto. O templo estava cheio. Fernando faz a oração inicial e passa a palavra para o dirigente dos louvores – a jovem Marilucia. O culto foi muito fervoroso. Em determinados momentos alguns jovens entravam em quase transe. Diziam eles que sentiam o Espírito Santo muito perto. A jovem Talita naquela noite de sábado viu uma cobra gigante rodando o oitão da igreja. A menina tomou um susto e gritou, isso fez o culto parar. - O que houve Talita? - Não sei. Disse Talita com muito medo. O grupo de mocidade pediu a igreja para orar por Talita. Toda a igreja se ergueu em oração pela jovem. Durante a oração Talita via Fernando enrolado pela cobra. E esta mordia sua cabeça causando-lhe a morte. Talita entende que Fernando seria ferido por um sentimento profundo, isso seria sua ruína. “O que posso fazer?” - Vera eu vi Fernando sendo engolido por uma cobra enorme. - Menina! Deixe dessas coisas! Somos renovados, mas, não acreditamos em qualquer visão. Não será que você estar apaixonada pelo novo pastor e não sabe? Parece que as moças todas estão loucas por ele. Jovem, inteligente, bonito! - Não é isso Vera! O que eu vi eu vi! Mas, uma vez Talita não era acreditada. A moça estava se acostumando com as coisas. Ela orou a Deus e pediu uma orientação. “Deus, se eu devo avisar teu servo, então, me fala pela Palavra”. Na manhã do outro dia, Talita abriu a bíblia e não encontrou resposta alguma. Leu alguns versículos, mas, nada que a remetesse a visão. “Deus me diz, então, que desta vez foi minha imaginação”. Talita agradeceu a Deus pela Sua resposta. Sete meses se passaram da data da visão ao dia do escândalo do novo pastor. Uma moça jovem apareceu grávida. A menina resistiu um tempo, depois contou tudo à direção da Igreja. Celestino aproveitou o ensejo para afinar seu discurso: “Pastor solteiro não pode dar certo”. O novo pastor era um homem velho casado com uma mulher de etnia africana. O casal tinha dois filhos. Ambos eram formados e viviam no Rio de janeiro. O casal de idoso gozava da sabedoria e da graça divina. Soboto soube da jovem vidente da Igreja. - Minha filha, você vê com os olhos abertos ou fechados? - Não faz diferença. Eu vejo de todo jeito. - Desde quando isso acontece? - Desde criança. - Você fala em línguas? - Não. Mas, tudo que vejo acontece. - Quando você vê algo depois você sabe o que viu? - Às vezes eu sei, às vezes não. - Entendo. A conversa com Soboto muito ajudou a jovem Talita. Ela entendeu que ela era dotada de faculdades dadas por Deus desde o seu nascimento, e que o que ela chamava de sobrenatural era a manifestação natural da natureza. Talita tinha na época dezoito anos. Nunca mais ela tivera visões. Isso durou muito tempo. Talita passou no concurso do estado, foi trabalhar como servente de uma escola estadual. Seu marido, um rapaz iluminado, era ajudante de pedreiro. O moço, embora, muito trabalhador, nunca gostou das letras. Mas, era um crente fiel. - Talita! Talita! - Sim! - Celestino vai levantar a mão contra o pastor. Ele deseja ser pastor em seu lugar. - Como? Quem fala? A voz falou-lhe três vezes. A menina estava lavando o banheiro da escola. Com a força do transe ela caiu inconsciente acordando em casa. Seus familiares nada sabiam. O médico do posto disse que o ocorrido foi por causa da gravidez. Todo mundo se aquietou, menos Talita. “E agora?” “O que vou fazer?” Essa se tornou sua preocupação. As visões da moça eram agora acompanhadas de vozes. A tudo ela atribuía à força do Divino Espírito Santo. “Eu sei que Ele está em mim”. Celestino venceu o pastor e o expulsou da igreja. Convenceu a Associação a colocá-lo como pastor. O diácono velho e tarimbado, finalmente, chegara ao cargo que tanto cobiçara. “A igreja do Evangelho Santo terá o maior ministério de sua história”. Os diáconos estavam do seu lado. Coisa que não acontecera com os outros pastores. Sempre eles foram oposição a qualquer um que subisse ao púlpito. Seu Sandoval perguntou a Celestino na primeira reunião de obreiros: “O que você fará com os místicos e renovados da Igreja?” “Eles sentirão o peso de minha mão”. Essa foi a resposta do diácono pastor. Três meses passaram. A barriga de Talita chamava a atenção de todos. - Minha filha louvado seja Deus por ti. - É minha mãe. O Senhor tem nos abençoado muito. Deus abençoe Celestino nessa nova missão. No culto de quarta feira. A igreja estava reunida para ouvir a pregação do presidente regional da Associação. O pastor Honorato. Este discorreu sobre a importância dos dízimos e das ofertas anuais de missões. “Meus irmãos, O Brasil é o celeiro do mundo, a pátria do evangelho!” Enquanto o homem pregava, Talita sentiu a presença de Deus, como ela dizia. Ela via Celestino visitando Honorato no Hospital. O pobre pregador de missões estava muito ferido. Ele estava na UTI. Depois Celestino anunciava a Igreja a morte do homem. Ele seria seu sucessor. Talita num ímpeto se levanta e diz a Honorato que não viajasse aquela noite para Salvador. A mensagem parou, a igreja ensurdeceu, e todo muito olhava para cara do outro. - O sangue de Jesus tem poder! Gritou Celestino. - Foi o Senhor mesmo quem me falou! Respondeu Talita. - Você deve estar possessa, minha filha! Isso não se diz! - Eu devo dizer a palavra do Senhor! Continuou Talita. - Deve estar possessa mesmo! Alguns diáconos foram até Talita e chamaram os fiéis para uma oração de intercessão pela vidente. O povo gritava, alguns falavam em línguas. E toda a congregação entrou em estado de loucura coletiva. Com a emoção Talita passou mal sendo levada ao hospital. A eclampse foi fulminante. A criança morta teve de ser retirada as pressas; a mãe ficou sob observação no hospital. Era noite quando um velho negro entra na enfermaria onde Talita estava. - Minha filha Deus vê pelos olhos do homem? - Então o homem vê pelos olhos de Deus? Respondeu Talita inconsciente. - Sim, é certo. Mas, nem tudo que Deus mostra; o homem quer ver. - Sim, eu sei; eu vi. - Põe teu barraco e ora com o povo, e pelo povo. A oração muito pode. Teus olhos verão a bondade de Zambi. Talita voltou à consciência. A lembrança daquele rosto negro e sereno não saía de sua cabeça. Ela decidiu não mais perguntar nada a dona Vera, a chefe do grupo de oração. Separou um horário em sua humilde casa e começou um grupo de oração. No início era ela e o marido. Depois o povo foi chegando. Uns vinham doentes, outros sem orientação, outros viciados, e muitos com a vida atrapalhada. A oração e a vidência de Talita atenderam a todos. A cidade de Campos sabia da oração da casa de Talita. “Leve um quilo de alimento senão ela não te atende. É para os pobres, mulher!” - Menina, eu tive lá para saber se Cledson me amava. Pois, a mulher não disse que ele estava com outra, mas, que ele gostava de mim. - E foi mulher? - Foi. - Eu soube da mãe do finado Flávio, a pobre nunca se conformava com a partida do filho, pois a vidente num recebeu o espírito do finado! Diz o povo que ele esteve em uma colônia que fica aqui perto da terra. - E foi comadre? - Foi. - Será mesmo? Talita se tornou mulher de oração. Uma vidente desse mundo de Deus. Sempre um velho negro rondava sua casa. Muitas vezes ela sonhava com ele, sentado em um toco, fumando seu cachimbo. O cheiro de alfazema enche seus pensamentos. Deus veio na forma de um bicho – uma pomba para João Batista. Para Talita, Deus apareceu na forma de um escravo, um Preto Velho... Tobias Barreto, 27 de janeiro de 2012. Roosevelt Vieira Leite

terça-feira, 4 de outubro de 2011

O BEATO

O BEATO

Seu Pepeu era um homem muito dedicado à vida religiosa. Não havia ano em que na época da festa da padroeira ele não passasse uma semana em jejum. O homem rezava o terço todos os dias e não perdia um novenário de Nossa Senhora Imperatriz. Ele vivia do comercio. Seu velho pai, Deus o tenha, o deixou uma casa de laticínio no centro comercial de Tobias Barreto – A Casa do Requeijão - como ficou conhecida por mais de cinquenta anos. Seu Pepeu podia todas as manhãs observar o movimento do povo indo e vindo na Avenida Sete de Junho bem próximo à Praça do Cruzeiro. Sua mulher dona Honorina era uma senhora alta, de pele branca, e feições europeias. Parece que descendia do povo do Sítio onde há uma explicita influencia holandesa.

- Pepeu! Disse dona Honorina.
- Sim! Respondeu Pepeu olhando para aqueles dois olhos azuis redondos.
- Pepeu, este ano nós vamos dar uma vaca para a reforma da Igreja na festa da padroeira.
- Honorina, essa foi uma grande ideia. Faremos cinquenta anos de casados no próximo dia três de Setembro. A festa da padroeira de Tobias era no mês de agosto, dia quinze do mês. Pepeu e Honorina estavam alegres com a proximidade das datas.

Pepeu tinha uma vida simples. Rezava, trabalhava e cuidava da família. Não gastava dinheiro com nada, embora fosse um homem rico. O requeijão lhe ofereceu uma velhice tranquila e credibilidade na sociedade tobiense. O casal tinha três filhos. Maria Rosa, a mais velha, separada do marido. Rosa ensinava no Estado. Eduardo, o segundo mais velho, era policial casado com uma moça chamada Isadora. A moça era de Lagarto. E o caçula Tadeu. Este não tinha jeito. Tadeu era um problema para a família.

Tadeu não gostava de estudar e nem de trabalhar. Fazia jogo do bicho de vez em quando. A maior parte do tempo passava com usuários de droga. Durante os últimos dez anos ele usou maconha. Agora a cidade de Tobias estava atormentada com a febre do craque. Tadeu conhecia alguns usuários, contudo, ainda não havia experimentado a pedra maldita.

- Tadeu, cara, você não imagina a viagem do craque. Eu gostei. Disse Porquinho. Porquinho era um amigo de infância de Tadeu.
- Rapaz, eu vou experimentar só para ver como é. Mas não quero ficar preso a isso não.

O tempo passou até que Porquinho apareceu com a danada para Tadeu experimentar. Eles usaram em um terreno baldio perto na saída da cidade. Os dois ficaram usando a pedra até o pobre Tadeu se viciar.
- Rapaz, você dizia que não ia se apegar. Tá vendo como o tempo passa e a gente nem percebe. A coisa é boa! Tadeu sentia que sua vida estava a cada dia afundando, mas, não conseguia parar de usar a maldita. O rapaz não tinha como pedir ajuda a família, pois, seus pais jamais entenderiam aquilo. Não demorou muito para a família notar que alguns objetos da casa estavam sumindo misteriosamente. Tadeu havia vendido a bicicleta e isso chamou a atenção de Pepeu.

- Tadeu! Venha cá rapaz!
- O que foi pai? Estou assistindo o jornal.
- Onde está sua bicicleta?
- Eu a vendi.
- Por quê?
- Sei lá, precisei do dinheiro.
- Estranho! Vai ficar a pé?
É.

Tadeu voltou para a televisão. E Pepeu para o quintal. Dona Honorina estava preocupada com a alimentação do filho, pois, ele parecia não ter mais apetite.

- Tadeu, meu filho não vai jantar não?
- Mãe, eu estou sem fome.
- Por que meu filho? Você não come mais? Tadeu pesava 80 quilos, agora o moço não passava dos setenta. A pedra havia tirado o apetite de Tadeu. O caminho para a destruição de sua saúde estava aberto. Às nove e dez da noite Tadeu sai de fininho para a casa de Porquinho. A rua estava escura. Havia um número pequeno de pessoas nas calçadas. Porquinho estava esperando o amigo na porta.

- Tadeu tem dez contos?
- Não.
- Estou doido para fumar uma coisa.
- Eu também. Disse Tadeu com voz ofegante. Um gosto de éter e cocaína vinha de suas entranhas. As substâncias letais saturaram seu corpo. O amigo o convida para entrar. Os dois se sentam no sofá da sala. A televisão estava ligada. Um noticiário dizia: “A policia prendeu 28 quilos de craque em uma residência na capital sergipana. Os policiais afirmam que o craque contém substâncias devastadoras. Até querosene já foi encontrado na sua formula”. Os dois colegas não tinham assunto para conversar. Ficaram no mesmo lugar em total indiferença. Ficaram assim até as onze horas, e ninguém apareceu para fumar com eles. Tadeu se levanta do sofá, vai até a porta e diz: “Valeu cara! Legal! Tadeu sai pela rua com uma angustia na alma. Um desejo quase incontrolável de consumir seu objeto de prazer. Uma viatura da polícia passa por ele bem devagar. O motor estava contado, os policiais olhavam para ele conversando entre si. Tadeu pensou sobre o que eles estavam dizendo. A viatura sai com pressa e desaparece na esquina duas quadras a frente. Tadeu se esqueceu dos policiais, e prosseguiu sua caminhada. Alguns minutos passam até o rapaz chegar à segunda esquina, a mesma que os policiais entraram. Tadeu dobra a esquina, levanta a cabeça e olha para frente, para o final da rua, mas, bem a sua frente estava um corpo caído. O rapaz para e pensa no que fazer. Pensou por um instante. Ele não havia ouvido tiros, a vizinhança estava em casa, o frio de Tobias espanta as pessoas das calçadas no mês de agosto. “E se ele tiver dinheiro”?” Pensou o filho de Pepeu. Tadeu corre até o copo e vira-o para ver se em seus bolsos havia dinheiro. Não havia dinheiro. Todavia, a maldita pedra estava lá. Eram sete pedras. Tadeu olha em direção a casa do amigo e volta para lá.

- Meu irmão, tem um cara caído ali. Eu olhei nos bolsos dele e encontrei a coisa. Vamos fumar!
- Vamos lá, meu! Os dois fumaram até o som da sirene da policia espantar a vizinhança.

Seu Pepeu se levanta assustado. Ele teve um sonho muito triste. Ele se via caindo num grande abismo. Contudo, antes de bater no chão, uma mão de mulher o ajuda. Era uma mão dourada que o segurava e impedia a trajetória da queda. Pepeu pediu água à mulher. Honorina estava do seu lado sentada na cama.

- O que foi homem, que você teve?
- Sei lá, Honorina, parecia que eu ia me estrepar no chão.
- E foi homem? Como foi?

Pepeu conta o sonho a sua mulher. Os dois pegaram o terço e foram rezar. Enquanto isso, no outro lado de Tobias, Tadeu e Porquinho estavam fumando a maldita. Eles estavam tão alterados que nem perceberam que a polícia estava na vizinhança fazendo perguntas. A polícia veio atender o telefonema da vizinha que ligou avisando do homem morto. A rua estava tomada de gente. Em Tobias quando algo acontece a notícia se espalha pela cidade como vento. Todo mundo quer ver o ocorrido, se possível, tocar.

- Rapaz, a rua tá cheia de gente!
- É o cara morto! Alguém deve ter avisado. Os dois voltaram para a curtição. Era mais de meia noite quando os policiais batem na porta de Porquinho. A casa estava infestada de evidências que comprovavam uso de entorpecentes. Os policiais, ao entraram, puxaram as armas e renderam os dois rapazes.

- Quer dizer que estavam puxando um? Quem matou o homem ali? Quem é Tadeu?
Porquinho disse que eles eram apenas viciados e que na casa dele não se vendia droga. Os policiais disseram que eles estavam à procura de um rapaz com as características de Tadeu, pois, uma vizinha o viu junto ao corpo. “Foi, seu soldado, Tadeu, o filho de Pepeu, estava virando o corpo e mexendo em seus bolsos; eu vi”. A policia levou Tadeu como suspeito do crime.

- Meu Deus, o que foi que eu fiz para merecer uma coisa dessas! Meu filho preso porque assaltou um homem para roubar drogas! Minha Mãe Santíssima!
- Acalma-te homem! Tudo vai se explicar! Disse dona Honorina para confortar seu marido. Dona Rosária aparece pelo muro do fundo da casa, no quintal onde Pepeu gostava de repousar, e diz: “Vai sair na radio!” Seu Pepeu se levantou da preguiçosa e marchou para a Sete de Junho. A radio ficava lá. As pessoas o atenderam muito bem, no entanto, eles não podiam deixar isso em branco porque o falecido era o famoso bicheiro da cidade. Ele era o homem morto no Padre Pedro, um conjunto habitacional de pessoas de baixa renda. “Meu Deus num acredito!” Exclamou Pepeu. Seu mundo estava desabando, sua fé estava sendo abalada. Sua vida, até aquele dia, fora uma vida de muita moral. Sua reputação era impecável. O nome de sua família com muito prestígio social. Ademais, a paz de seus dias parecia que estava chegando ao fim. Nessa hora, as pessoas religiosas usam a célebre pergunta: “O que foi que eu fiz?”

- Meu filho, algum dia eu fiz algo que servisse de mau exemplo para você. Disse Pepeu com os olhos cheios de lágrimas.
- Não é isso meu pai! Eu apenas experimentei e fui gostando quando me dei por conta, ela era mais forte de que eu. Falou Tadeu abrindo o coração.
- Meu filho, eu sempre fui uma pessoa honesta. Trabalhei muito para dar conforto a vocês. Eu não merecia isso.
- Sei meu pai, desculpe! Tadeu via que seu pai não abriria um dialogo aberto sobre o assunto. Por isso resolveu tentar sozinho o caminho de volta a paz.

Passaram-se três dias. Os exames cadavéricos comprovaram a inocência de Tadeu. Seu Pepeu ficou aliviado por um lado. Mas, a droga na vida de seu filho era um problema que ele teria que resolver. A polícia periciou o cadáver do bicheiro e descobriu que ele havia sido ele havia sido sufocado até a morte. A morte se deu por volta de seis da tarde e puseram o corpo ali para incriminar o rapaz. Tadeu era usuário de drogas, as chances para a polícia pôr a culpa nele eram grandes. Eles só não sabiam que o usuário de drogas era filho de Pepeu. O fato de Tadeu ser filho de Pepeu motivou as autoridades a esclarecer os fatos.

- Tentaram armar contra o rapaz. Disse o cabo Raimundo.
- Eu sei seu Raimundo. Disse Pepeu com um ar misturado de alívio e vergonha.
- Mas, seu Pepeu, você tem que tratar Tadeu. O craque é uma droga devastadora, é um caminho sem retorno.
- É isso mesmo, seu Raimundo. Quanto é o tratamento? Perguntou seu Pepeu com um tom nervoso na voz.
- Rapaz, em Aracaju, na Clínica Nossa Senhora das Dores custa quatrocentos reais por mês, fora o acompanhante nos primeiros dias. Sua pessoa deve saber. A abstinência do craque é muito traumática para o usuário, então, é bom que um membro da família acompanhe o viciado. Pepeu interrompe o cabo Raimundo e diz: “Muito bem, já entendi. Seu Raimundo muito obrigado por tudo”. Pepeu subiu a ladeira da Matriz em direção a Avenida Sete. “Quatrocentos reais! Tá doido Raimundo!” Pensou Pepeu.

- Tadeu, chega aqui!
- Sim, meu pai.
- Prometa-me, por amor de Deus!
- Sim, meu pai.
- Nunca mais se meta com gente drogada! Se você fizer isso de novo, eu o mando para o olho da rua!
- Certo meu pai.

Tadeu voltou a usar drogas. Ele sabia que não a venceria. Quando o craque se instala no sujeito, somente um milagre de Deus pode resgatá-lo, e parecia que o jovem Tadeu estava precisando de um. Tadeu voltou à casa de Porquinho. O bom filho volta a sua casa. Esse é um ditado muito certo quando nos referimos às drogas. O hábito retorna, e desta vez, com força sete vezes maior, digamos...
Porquinho e Tadeu fumavam todos os dias, três vezes por dia, que dava um total de oitenta e quatro cigarros por mês. Esse número era maior quando os amigos de outros bairros se juntavam com eles no fumódromo como eles chamavam – a casa de Porquinho. Algumas vezes algumas garotas se juntavam a eles, quando isso acontecia a orgia varava a noite. As coisas não pareciam tão ruins assim, a droga era fácil, o sexo razoável, as festas dentro das possibilidades, comida, cama quente e roupa lavada. Dona Honorina, embora soubesse de tudo, se mantinha calada porque temia a reação do marido.

- Meu amor a festa da padroeira vai ser linda!
- Este ano faremos bodas de ouro. São cinqüenta anos vivendo o sacramento do amor pelo casamento.
- É, meu bem. Graças a Deus que nossa família foi muito abençoada. Mal terminou a frase o radio anuncia a morte de um rapaz de vinte sete anos. “Foi encontrado agora a pouco, às dezessete horas, o corpo de um maconheiro no matagal próximo ao bairro Suti. Testemunhas dizem que foi a polícia que jogou o corpo no referido matagal. Vamos, agora, ouvir o depoimento do delegado”. “Bem, vamos tomar as providências para apurar as denúncias. Se for encontrado provas contundentes que a autoria do crime é da polícia, ou foram policias que jogaram o copo ali, todos serão punidos de forma exemplar”. “Mas, Dr. Telésio, como era o nome do rapaz morto?” “O nome do rapaz era Antônio Furtado Soares, vulgo, Porquinho”. Dona Honorina foi noutro mundo e voltou, e quando voltou, voltou tonta, e caiu no piso do quintal. “Chega!” Gritou Pepeu para alguém acudir à pobre. “O que foi mulher?” “Nada Pepeu. Foi só uma tontura, coisa de gente velha”. Dona Honorina se sentou. A imagem de seu filho estava em sua cabeça; ela precisava vê-lo. Mas Tadeu não apareceu aquele dia. Nem no outro, nem no outro, e assim foi por toda a semana que antecedia a festa da Santa da Vila de Campos. “Mulher, cadê Tadeu? Eu num vejo mais ele! Eu estou precisando dele no estabelecimento. Márcio está de dengue, e Tadeu vai ficar no lugar dele”. Dona Honorina não conteve a emoção e abriu o coração para o marido. Tadeu estava desaparecido. Três dias antes da festa, chegam dois policiais a casa de Pepeu.

- Bom dia moço!
- Bom dia!
- O senhor é o pai de José Tadeu dos santos?
- Sim, sou! Sim, eu sou! Gritou o pobre homem. Pepeu estava muito triste com o sumiço do filho. Embora não acreditasse que ele estivesse morto. Pepeu achava que seu filho, que não prestava, tinha partido.
- Seu filho foi encontrado hoje na estrada de Itapicurú. Ele está morto no IML em Salvador. Precisamos de sua ajuda para reconhecer o cadáver.

As palavras do policial adoeceram o velho Pepeu. Agora o coitado estava sem terra debaixo dos pés. “Minha Mãe Santíssima o que foi que eu fiz!” Mal terminou a prece o seu velho corpo caiu no chão. Pepeu foi levado para Aracaju em uma ambulância do município – fretar um taxi, segundo dona Honorina, seria muito caro. O estado do velho era grave.

- Pepeu! Pepeu!
- Sim, Seu Zacarias! Quanto tempo! Seu Zacarias tinha uma venda ao lado do estabelecimento de Pepeu. Os dois trocaram prosas durante anos. Seu Zacarias foi vencido pela pressão alta e agora morava do outro lado.
- O que você está fazendo aqui?
- Nem sei, senti uma dor no peito e acordei aqui. Que lugar é esse?
- É algum lugar entre o céu e a terra. Disse Zacarias.

Os dois amigos conversaram muito. Deram risadas, e jogaram dominó sentados na calçada. O prédio era alto e tinha muitas janelas. As pessoas desciam e subiam o tempo inteiro.
- Que prédio é esse?
- Aqui as pessoas fazem experiências. Quando elas se dão bem, elas sobem. Quando elas se dão mal, elas descem. Aqui a vida é encarada como uma tentativa. A moral está em compreender que todos são aprendentes de uma forma ou de outra. O julgamento é preconceituoso porque o tempo não para e as pessoas também. Assim, julgar alguém é considerar uma face de algo multifaceado.
- Não entendo! O que é certo é certo e pronto!
- É por isso que você está aqui.
- Como assim?
- É preciso o amigo aprender que o bem e o mal transitam entre si.
Pepeu acordou. Ele estava na UTI do Hospital João Alves. A festa da santa havia passado. O corpo de Tadeu não havia sido reconhecido. Pepeu pediu forças a Deus para saber do paradeiro de seu filho. O tempo passou e seu Pepeu melhorou. Dona Honorina providenciou um parente para ir a Salvador reconhecer o corpo.

- Tia! Não era Tadeu não!
- E agora meu Deus? Graças a Deus que meu filho não está morto! A felicidade tomou a casa. A família tinha esperanças de encontrar o rapaz. Os anos passaram e nada de Tadeu. Seu Pepeu estava velho. Muito cansado por causa do enfraquecimento do coração. Visitava muito pouco a igreja. Contudo, nunca se apartava de seu terço. Em oração constante e com muita devoção Pepeu rezava para a Mãe de todos os mortais. Sentado na preguiçosa adormece com o terço na mão.
- Pepeu! Pepeu!
Pepeu acordou; seu mundo não era mais o mesmo. Ele estava em uma praia de rio. A água era cristalina. Ele podia ver a areia branca no fundo. O velho levanta sua cabeça, avista uma figura de um rapaz sentado com uns colegas. O reconhece. Era Tadeu. O rapaz conversava com amigos. Entre eles estava o finado Porquinho. Todos pareciam muito bem. Não havia drogas, nem nada que fizesse um mortal chorar. Alguns homens mais velhos levaram os jovens para uma nuvem muito brilhosa. A nuvem os levou para longe da visão de Pepeu. O velho pensou: “Graças a Deus, meu filho está em um bom lugar!”
- Pepeu! Uma voz chamou seu nome novamente. O velho estava esperando rever algum amigo de antes. Seu sonho foi frustrado, pois, a sua procura estava um senhor iracundo muito impaciente.
- Vamos, vamos!
- Calma moço! Respeite minha idade!
- Não isso aqui não. O que tem de ser feito, tem de ser feito!
- É. Isso é verdade, mas, num dá para esperar um pouco não? Estou muito perturbado. Onde estou?
Seu Pepeu morou naquele lugar até chegar seu dia de retornar a terra...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Educação e dialogismo: O brega será sempre brega?

Educação e dialogismo: O brega será sempre brega?

Paulo Freire concebeu a educação como um processo entre sujeitos. Como ele mesmo diz: “ninguém se educa sozinho”. Freire entende a educação não como um fenômeno que ocorre no interior das instituições de ensino apenas; para ele, a educação é natural a nossa espécie. Somos os únicos animais da natureza que necessitam de educação, logo, a educação natural é a informal, “ninguém chega à escola sem nada”. (Freire, 1987)

O sujeito freireano não é uma tábua rasa, nem é um sujeito que se constrói unicamente pela atuação de profissionais de ensino. O sujeito de Freire chega à escola com uma visão de mundo, uma história de vida, e uma bagagem de conhecimentos adquiridos no convívio com outros seres humanos. O sujeito de Freire é um sujeito que está na situação de diálogo com o mundo e consigo mesmo.

“O diálogo como encontro dos homens para a pronúncia do mundo é uma condição fundamental para a sua humanização”. (Freire, Pedagogia do Oprimido, p.77, 1987)

O sujeito do diálogo ou dialógico não é uma abstração exclusiva de Freire. Antes dele, Bakhtin já o havia visto com muita clareza. Para o educador pernambucano a palavra é portadora de um valor ímpar. Segundo ele, ela constrói a história e desconstrói realidades. É por meio dela que os homens dominam seus semelhantes, e fazendo isso negam a si mesmos. Ademais, está no usa dela a possibilidade de libertação. (Freire, 1987), (Bakhtin, 1981 apud Dieb e Araújo, 2010)

Tanto Freire como Bakhtin expurgam totalmente o monólogo da educação. Ambos entendem que o homem possui essência dialógica. O homem só se torna sujeito no diálogo. O outro para nós é fator constitutivo de nossa subjetividade. Portanto, a educação bancária, como coloca Freire, é uma educação monológica, imprópria para a criação de sujeitos críticos e autônomos, uma vez, que ela possui um professor narrador da realidade. (Freire, 1987), (Bakhtin, 1981 apud Dieb e Araújo, 2010)

Freire percebe que quanto ao uso da palavra a relação entre os homens não é igual. Existem aqueles que fazem uso dela para a dominação, para instaurar o silêncio, um furto da palavra do outro. Ele chama essa atitude de necessidade de conquista. A palavra se volta contra o outro para dominá-lo e sujeitá-lo por um processo de amansamento e alienação. Freire viu que as camadas populares de nossa sociedade eram hospedeiras da palavra do dominador. (Freire, 1987)

Bakhtin entende a língua como diálogo. Ele não a concebe como um sistema fechado que se auto-explica, nem como uma mera expressão do psiquismo do sujeito. Para ele a língua é um lugar de interação humana, um lugar onde se entrecruzam valores sociais de orientação contrária.
Bakhtin considera empobrecedoras estas duas maneiras de conceber a língua, a qual é entendida pelo autor como um lugar de interação humana e, por isso, nos limites de sua proposta teórica, não há espaços para entendê-la como um ato individual, tampouco como uma estrutura fechada em si. Assim, entende a interação humana como “uma arena [...] onde se entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória” (p. 66). (Bakhtin, 1981 apud Dieb e Araújo, 2010)

A visão de Bakhtin conjugada com a visão freireana de educação nos sugere que o processo de ensino e aprendizagem deve ser dialógico, pois seu carro-chefe é a palavra e esta é diálogo por excelência. Mas não foi isso que o educador brasileiro percebeu em sua passagem pela terra. Freire viu que a educação a qual ele chamou de bancária se funda na criação de mitos, no autoritarismo, no monólogo e na concepção mecânica de educação, ou seja, somos enquanto aprendente um depósito de narrativas do mundo, o mundo do outro, e este outro, representado pelo professor, tão alienado quanto o seu discípulo, é o dominador. (Freire, 1987), (Bakhtin, 1981 apud Dieb e Araújo, 2010)

Neste breve ensaio sobre educação dialógica não há a intenção de expor o cruzamento de idéias ente Bakhtin e Freire de forma aprofundada. Nossa pretensão é modesta. No entanto, não posso desconsiderar que tanto um quanto o outro viram a hierarquia do discurso. A semelhança de Foucault, Bakhtin e Freire viram que embora os discursos, não importando seu gênero, se digladiam, se refutam, se afirmam, se negam. Os discursos são como muitas vozes no mundo, são enunciados. O hospedeiro do dominador não o percebe, mas, repassa sua voz adiante, desta forma a ordem do discurso é a do dominador, pois, sua fala não lhe foi roubada, contudo, para Freire esse dominador se anula ao anular o dominado, o mesmo pensa Bakhtin, uma vez que se falo, falo para o outro, se outro não pode falar, eu não existo enquanto ser falante; estou só no mundo.
Nos embates da interação, os sujeitos se instauram a si próprios na medida em que não há uma proeminência de um sobre o outro e, por isso, ambos se revestem de uma postura responsiva ativa (BAKHTIN, [1953] 2000). (Bakhtin, 1981 apud Dieb e Araújo, 2010)

Na verdade Bakhtin não diz que existe hierarquia quanto ao discurso. O discurso, para ele, é polifônico. São muitas vozes no mundo e que a realidade é constituída de vozes que estão nos dizendo constantemente do mundo. Por esta causa não deve haver um discurso se impondo sobre o outro e que o professor deve ter cuidado de não deixar isto acontecer em sala de aula. Uma vez que todos os discursos nos falam do mundo cabe ao professor ter a capacidade de oportunizar ao seu alunado a maior quantidade possível de discursos. Pois assim, seus alunos terão acesso a diferentes visões da realidade. Roubar a fala do outro, na visão de Freire, seria não dar ao educando a capacidade de expressar o seu próprio discurso para que este tenha a oportunidade de conhecer o que sabe de seu mundo.


Assim meus caros, se o discurso é polifônico e a educação comporta diferentes discursos, podemos inferir, então, que o dialogismo freireano é polifônico. Sendo assim, a musicalidade brega enquanto discurso, pode com toda certeza ser usada em sala de aula nos cursos de produção textual nas séries do ensino médio. Isso se sustenta porque a música brega comporta diferentes discursos e por isso diferentes visões de mundo, e isso ocorre de tal forma que Sousa e Leite dizem que se torna muito difícil a classificação desse gênero musical:
Acreditamos que é devido a essas sucessões ambíguas, instáveis e incessantemente re-combinatórias que encontrarmos profundas dificuldades em definirmos com clareza e exatidão, gêneros musicais como a música brega, por exemplo. Esse universo musical está sempre disposto a se transformar, agregando ao seu repertório, uma rede extensa e complexa de referências musicais oriundas de diversas fontes, possibilitando compor em seu universo musical uma heterogeneidade de estilos musicais com o seu hibridismo cultural, o que termina por nos dificultar delimitar com clareza o que seria de fato, a música brega. (Sousa e Leite, Música brega: Um fantasma visível, 2009)

Ademais não resta dúvida quanto à facilidade de sua textualidade. A música brega é considerada brega por alguns porque possui linguagem “chula”; acredito que esta classificação é equivocada, mas, contudo, não deixa de ter uma verdade: Os textos bregas plasmam a língua do povo no papel. Sendo assim, usá-las como ponto de partida nas aulas de produção de texto e literatura seria muito interessante. Quanto ao uso do termo fácil nesse breve ensaio tem apenas efeito didático, pois, devo dizer que o termo em apreço é de difícil classificação no que tange ao léxico, afinal, o que é fácil enquanto palavra no léxico?
Ao compreender o brega como a cópia de um modelo e de um estilo, José (1991) descreve que nessa estética “as estruturas sonoras são organizadas e mantidas sem oposição, provocando nos ouvintes uma pasteurização em que todos os arranjos ganham um mesmo assobio”(p: 134). Outra característica da música brega se refere à simplicidade dos arranjos geralmente encontrados nessa música. Ao fazer uma introdução em seu livro sobre a música brega, Cabrera (2007) nos mostra que esse estilo musical se caracteriza pelas “rimas fáceis e palavras simples, num arranjo musical sem grandes elaborações” (2007, p.08). (Sousa e Leite, Música Brega: Um fantasma Visível, 2009)

Conclusão:
Não compartilhar da idéia de conspiração contra o pobre não é uma virtude, do mesmo modo, acreditar que ela existe não é um defeito. Existem sistemas e discursos que legitimiza uma determinada realidade. Sistemas que educam seres humanos de acordo com sua visão de mundo e os tornam presas fáceis de seus monstros ocultos em seus meandros, becos e vielas. No que concerne a nossa Educação, a História da mesma já nos dá uma grande ajuda para entendê-la. Fica aqui uma pergunta: Se temos acesso a tantas teorias e métodos, por que a nossa educação não nos atende a necessidade premente de nosso país: Consciência crítica? Quem sabe iniciando uma prática de leitura e redação com temas que falam de nossas angustias, manias e fobias, e nos revelam nossa cara bem popular com cheiro de sabão e perfume barato, ou até mesmo o velho francês, nosso proletariado não consiga engatinhando pronunciar o mundo?

REFERÊNCIAS:
Freire, Paulo pedagogia do oprimido, 13ª. Ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
WWW.julioaraujo.com/download/artigo10.pdf
Souza, Vinícius Rodrigues Alves; Leite, Reuel Machado. Música Brega : Um fantasma Visível. (Artigo apresentado no Seminário de Estudos Culturais e Relações Interétinicas. UFS, 2009)

sábado, 21 de maio de 2011

Angustias

Angustias

A casa tinha um pingo d’água gotejante do telhado da sala.
O pingo d’água era da casa uma constante e intermitente perturbação.
Havia um balde na sala, nele a água do pingo se aquietava após sua tortura não intencional.

A sala estava vazia, móveis empoeirados, somente lembranças.
Sua atmosfera era quieta, sossegada no passado que fora.
Somente os bichos e insetos desfilam pelo caminho.

Eu estive lá.
Minha vida esteve lá.
Meus amigos estiveram lá.
Meus inimigos desfilaram mascarados pelos cômodos em trajes de gala.

Tudo parece o que era; uma casa.
Poderia ter sido a tua.
Poderia ter sido destruída pelo tempo.
Mas a casa ainda está lá.

Não há moradores;
Só gemidos nas paredes.
Ninguém me aluga!
Aqui é lugar de dores!
Vou ficar velha caduca!
Sou mulher estrupada nas noites solitárias.
Defecam aqui como se eu fosse um sanitário.
Sou um covil de ninguém travestido de gente que mora na rua.
Pobre de mim; estou nua!

Espere!
Alguém bate à porta.
Ouço o barulho de seres humanos.
A menina pensava ser amada.
Seu corpo despido sobre os lençóis sujos;
Esperava ser acariciado.

Uma seringa, duas seringas.
Conversas sem sentido.
Nada de sexo.
Pequenas feridas.
Roxas picadas em pele branca de gente granfina.
Despede-se da vida a pobre namorada em uma casa abandonada.
Seus amigos dizem:
Sei lá onde!
Mas, eu...
Eu já estive lá!